O mundo está em convulsão: são as alterações climáticas, que vieram para ficar; são as migrações que alteram a “estabilidade” social, construída para realidades únicas; são as invasões de pragas que devastam tudo por onde passam; são as doenças epidémicas que dizimam populações humanas, tal como em tempos medievais. E tudo isto vem contra a noção de progresso, definido como o actual domínio tecnológico e científico que permite (quase todo) o controlo dos fenómenos naturais.
Dominar e resolver rapidamente é o objectivo. Não importa se as soluções encontradas hoje, aumentarão os problemas de amanhã. E ao contrário do que muitos activistas propalam, o problema não reside exclusivamente nos governos ou nas empresas, reside em todos nós, ocidentais, que usamos, e não abdicamos, das comodidades que a utilização dos combustíveis fósseis nos oferece. Novos valores e ligações entre ciência ecológica e desenvolvimento podem permitir a definição de limites económicos e estratégias sociais e políticas, com base na relação entre homem e recursos. A ciência desenvolvida com base na Ecologia não é marginal ou subordinada porque, pelo contrário, sendo transversal e multidisciplinar, desempenha papel central na solução de problemas ligados ao cumprimento da Agenda 2030 do Desenvolvimento Sustentável.
O desenvolvimento económico, social e tecnológico do pós-guerras mundiais, iniciado há 75 anos, permitiu o aumento populacional que colocou uma elevada pressão no planeta Terra. Todo este desenvolvimento foi possível devido à diversificação das fontes de energia. Importa lembrar que todos os processos metabólicos subjacentes à vida estão dependentes de uma fonte de energia, solar no caso dos organismos fotossintéticos, química para todos os outros. O Homem, ao longo da sua evolução, aprendeu a explorar as energias disponíveis. E se antes da revolução industrial a energia para serviços era retirada da tracção animal, a exploração de carvão e petróleo tornou a sociedade mais ágil e capaz de novos desafios. A modernidade fez da celeridade uma condição, como se fosse comandada pela busca do cavalo de Samarra. (O cavalo do servo do rei de Basra, da antiga Mesopotâmia, tinha de ser o mais veloz para lhe permitir fugir à morte). Esta lenda oriental retrata bem o desenvolvimento da sociedade moderna, realizado pela busca de soluções tecnológicas rápidas, com uma fé cega, sem respeito pela natureza. O problema é que os processos biológicos desenvolvem-se em tempos completamente distintos dos que norteiam o mercado económico. Na natureza, o equilíbrio alcança-se com a evolução e adaptação. Na sociedade actual, o equilíbrio baseia-se no domínio sobre a técnica, para controlo de problemas de momento. É um logro pensar que o desenvolvimento científico e tecnológico pode permitir o domínio e posterior transformação da natureza. Existe hoje uma onda de ecologistas que colocam em dúvida os próprios fundamentos do modo de vida actual e que vão ao encontro da necessidade de transformação social a que o Papa Francisco alude na sua Encíclica “Laudato Si”. Quais as mudanças necessárias para que o desenvolvimento das sociedades tenha por base a qualidade de vida e não apenas o poder económico? Quais os agentes capazes de provocar essa transição? Este é um desafio que deverá ser liderado pelos ecólogos, os profissionais em Ecologia, pela sua capacidade de integração e forte multidisciplinaridade e pelos economistas, pela sua forte ligação ao poder económico e político.
Apesar do conceito de ecologia ter sido introduzido em 1866, a Ecologia, enquanto ciência, é muito recente. De acordo com a definição proposta por Ernst Haeckel, ecologia é o estudo das interrelações entre organismos e destes com o meio envolvente, incluindo, em sentido lato, todas as condições necessárias à sobrevivência. Uma ciência define-se pelo objecto e pelo método de estudo e a definição do objecto só se consagrou a partir de 1935, com Arthur Tansley, ao definir ecossistema como unidade de estudo. A partir desse momento nasce a Ecologia Moderna, ciência transversal, aberta às sociedades humanas, e a uma diversidade de ferramentas científicas. É por isso necessário reformular a definição de investigador em ecologia, ou ecólogo. Ele pode trabalhar com biólogos moleculares para entender as histórias evolutivas de espécies em ecossistemas ou com microbiólogos para compreender o papel de micróbios não estudados em todo o funcionamento do ecossistema. Os ecólogos podem estudar as cadeias alimentares responsáveis pela gestão de “stocks” de peixes e sumidouros de carbono, ou as terras geladas para entender como a perda de uma função nesses ecossistemas limitantes tem um impacto maior nas mudanças climáticas. Os ecólogos contribuem para preencher a lacuna de conhecimento em relação às complexidades do funcionamento e gestão do ecossistema e por isso a sua ligação à botânica e geoquímica, à oceanografia e climatologia, à agronomia e economia. Mas devem também saber comunicar com os cidadãos usando mensagens científicas claras e simples, para que as pessoas entendam que a ciência não é um objecto tangível e imutável que possa ser enfrentado sem obstáculos. Segundo Jean-Paul Deléage, o ecólogo é o astrónomo das ciências da vida, já que o estudo do ecossistema necessita de uma visão ampla, holística, não pode ficar de olho pregado na ocular do seu microscópio.
A realidade é que neste momento há alterações globais que se fazem sentir e que estão a alterar o padrão de vida da sociedade. O aumento de temperatura e a seca são já realidades, não previsões. No séc. XXI as catástrofes naturais ocorridas num determinado local afectam toda a economia global e as epidemias ou surtos virais acabam por corromper o equilíbrio instalado mostrando que nem tudo o Homem pode controlar, por mais tecnologia e conhecimento científico que consiga desenvolver. De que forma a Ecologia pode servir a sociedade aconselhando políticas e sabendo definir agendas de investimento em investigação? Sensibilizar a sociedade e os políticos para a necessidade de actuar sobre a perda de biodiversidade, a alteração e adulteração dos ecossistemas, indo contra projectos de infraestruturas ditos de desenvolvimento? Mostrar que o equilíbrio da natureza é extremamente delicado e pode ser irreversivelmente perturbado pelo Homem, como aliás se tem vindo a assistir? Asseverar que a destruição do meio ambiente e o desperdício de recursos nunca traz benefícios a longo prazo do ponto de vista económico e social, mesmo que, no imediato, leve ao aumento de emprego? Este tipo de questões requer respostas que provêm de estudos multi e interdisciplinares.
A Ecologia é hoje uma ciência transversal, não mais apenas um ramo da biologia, que veio trazer uma nova abordagem científica permitindo e cultivando a ligação entre ciências naturais e sociais.
Só a revolução científica de integração destas duas visões conceptuais poderá permitir as mudanças económicas de fundo. Não basta a vontade da redução de emissões de gases com efeito de estufa. Teremos de alterar a forma como geramos e consumimos energia. Para além das emissões, há que olhar a diversidade do planeta, nos continentes e nos oceanos, já que ela é o tampão esquecido e completamente ignorado nas decisões políticas. Por alguma razão as Nações Unidas declararam esta a década do Restauro Ecológico. O risco económico em consequência da perda de biodiversidade foi assumido pelo Fórum Económico Mundial. A proposta está no desenvolvimento de medidas de prevenção e colaboração activa para uma maior eficiência nas estratégias de conservação e restauro dos ecossistemas. A reunião de Davos trouxe algumas inovações, nomeadamente, a noção de que as empresas não têm apenas a responsabilidade de gerar lucros para os seus investidores, mas para todos os afectados pelas suas acções, como a força de trabalho, consumidores ou meio ambiente. A integração da análise de riscos relacionados com o clima, pragas, ou epidemias na monitorização da estabilidade financeira é um desafio devido à incerteza associada a fenómenos físicos, sociais e económicos que mudam constantemente e envolve dinâmicas complexas e reacções em cadeia. Isso requer um conhecimento holístico e profundo como é cultivado nas equipas multidisciplinares em que os ecólogos trabalham.
A sociedade deve exigir cada vez mais uma alteração da gestão económica e dos parâmetros usados para a construção dos índices de desenvolvimento. Mas para isso cada um de nós terá de contribuir, de forma diferenciada, para aceitar e exigir as mudanças. Isto só se consegue com formação, aumento da literacia científica, sensibilização por parte dos media, de forma assertiva e continuada, sem alarmismo. As soluções são complexas e exigem sacrifícios. Mas sem elas a construção de um mundo mais equitativo e solidário, com melhor qualidade de vida e mais sustentável será dificilmente alcançada.
Maria Amélia Martins-Loução
Presidente da Sociedade Portuguesa de Ecologia
Fonte: Diário do Minho, edição de Quinta-Feita, 19 de Março de 2020